Tuesday, July 17, 2007

Crónica Feminina - Inês Pedrosa

Cidadania de miséria
Sou lisboeta por escolha, desde há muitos anos, o que significa que tenho mais amor a Lisboa do que à terra onde nasci: nenhum laço natural me prende a este lugar, apaixonei-me pela cidade e decidi viver dentro dela. Que 62,6 por cento dos habitantes de Lisboa tenham manifestado, através da abstenção, a sua total indiferença pelos destinos da cidade, é algo que me deixa, mais do que desiludida, envergonhada. Trata-se de um gravíssimo sinal de desdém pela democracia. Esta demissão dos cidadãos em relação às suas responsabilidades deveria ser sancionada: quem se está nas tintas para o Governo da cidade deveria perder o direito a candidatar-se a empregos, bolsas ou apoios públicos. Não vejo outra forma de educar as pessoas para a participação cívica, a não ser esta: amor com amor se paga - e a mesma paga é devida, dos políticos que somos todos nós (cidadãos eleitores) aos que desprezam a vida da polis (os cidadãos que nem se incomodam a ir votar). Se nenhum dos 12 candidatos interessava a esta maioria de lisboetas, que o expressassem no voto em branco. Mas não é crível que, entre tantos candidatos e propostas diferentes, os lisboetas abstencionistas não encontrassem um voto à sua medida. Simplesmente, decidiram encostar-se àquele analfabeto lugar-comum dos mimados da democracia, que reza assim: «Os políticos são todos iguais». Esta frase é falsa, injusta e profundamente antidemocrática. Depois não se queixem.

A data das eleições, no meio do Verão, também não ajudou. Não entendo porque é que o tão propagado «choque tecnológico» ainda não criou a possibilidade do voto electrónico. De resto, também não percebo porque é que um cidadão que queira votar, mas esteja, à data das eleições, em serviço no estrangeiro, não o pode fazer antecipadamente, ou num consulado do local onde se encontre. Aconteceu comigo nas eleições municipais de 2005: prontifiquei-me a entregar uma carta do então Instituto Português do Livro e das Bibliotecas informando que estaria a representar o país num evento literário no Brasil, mas a Comissão Nacional de Eleições informou-me de que só os atletas de alta competição tinham direito a voto antecipado, nestas condições. Não percebo porque é que um futebolista ou ginasta conserva o direito ao voto quando se ausenta em representação do país e um escritor ou artista o perde, nas mesmas circunstâncias.

Teria sido, de facto, muito mais sensato manter a Comissão Administrativa em funções até Setembro, e realizar então eleições para um mandato completo. Note-se que esta Comissão Administrativa, de apenas 5 pessoas - presidida por duas mulheres, o que é inédito no Governo Municipal (Marina Ferreira do PSD e Ana Sara Brito do PS) - já resolveu mais problemas em dois meses do que o último executivo camarário em dois anos: desbloqueou obras paradas, estabeleceu protocolos com escolas e associações de pais para possibilitar o bom arranque do ano escolar, acudiu à situação calamitosa que viviam as organizações de apoio aos sem-abrigo da cidade e fez o levantamento total da dívida camarária, e o seu escalonamento. Entre outras coisas.

Também me é difícil aceitar que tantos lisboetas substituam o escrutínio à acção governativa - social e financeiramente desastrosa, de uma forma muito concreta, nos últimos anos - por um misto de piedade e fascínio bruto pelo poder instituído, que me parece ser a única explicação
(dou alvíssaras por outras) para o segundo lugar obtido por Carmona Rodrigues, que conseguiu inclusivamente afastar da Câmara o CDS-PP.

É verdade que os ataques pessoais desceram, nesta campanha, vários graus abaixo de zero - e isso desmobiliza o eleitorado. Os enredos conspirativos, completamente infundados, tecidos à volta de José Miguel Júdice e Paulo Portas, foram um momento particularmente triste da democracia portuguesa. Espero que a polícia e os tribunais apurem a origem das calúnias e as penalizem devidamente. Já para não falar da humilhação que constitui para a Universidade Portuguesa o chumbo claramente político de alguém com o currículo de Saldanha Sanches. Quando a golpada substitui o debate, a democracia reduz-se drasticamente - até porque, neste registo, só os biltres se entendem. Com exemplos destes, as pessoas de bem, sejam elas de esquerda ou de direita - velhacos, há-os em todo o espectro político, até porque têm uma particular arte para se acoitar junto do que está a dar - , acabarão por desistir de intervir na vida pública. Depois queixem-se.

PS - A contestação à resposta do Ministro dos Assuntos Parlamentares à minha crónica de 7.7.2007 sobre o Estatuto do Jornalista encontra-se, ponto por ponto, no texto do próprio estatuto do jornalista, disponível em http://www.ics.pt/Ficheiros/Legisl/Jornalismo/prop_lei_est_jornalista.pdf

Está lá tudo aquilo que referi, e mais ainda. Gostaria apenas de esclarecer que o sigilo das fontes (que, de facto, o anterior Estatuto já desprotegia) me parece tão inegociável como o sigilo profissional de médicos ou advogados.

1 comment:

Anonymous said...

É impressionante como as pessoas preferem mastigar lamúrias e jogar a sua mais forte arma, ganha no forjar deste país - a cidadania, a comprometerem-se e fazerem alguma coisa. Quem não vota é apenas um espectro, na antiga roma seria considerado um escravo.